Disse o profeta:

57º Congresso Internacional do Medo

No princípio é o medo.
Todo boi é da cara preta. Todo bicho é papão. Todo suor é frio. Todo terror, noturno. Há um monstro embaixo de cada cama. Há um monstro embaixo de cada país.
A indústria do medo, as plantações de pavor, o comércio do susto, a genética da fobia, a clonagem do terror. Este, o sentimento do mundo.
Só existem noites. O sol fugiu para outra galáxia, em busca de outra humanidade. Mas as sombras permanecem. E têm medo da própria sombra.
Mas o mal não chega mais. Fica sempre à espreita, na próxima esquina. E as esquinas também não chegam. Estão sempre no próximo passo. Que ninguém dará.
Alcançamos o reino da liberdade, nenhuma porta mais tem chave. Pode ser aberta a qualquer hora por qualquer um. Não há mais miseráveis nem despossuídos. Todos tem o que perder. E não é mais necessário desconfiar de ninguém. Todos são inimigos.
Preparamos uma canção que enlouquece os homens e acorda as crianças. Nosso hino, a ser cantado nas igrejas, nas escolas, nos estádios, em todos os lugares de encontro. Se encontros houvesse.
É obrigatório sonhar. E os sonhos são abismos, ondas, nudez na multidão, pernas que não saem do lugar. E o ar pesado, inquieto, que não se deixa respirar.
Ninguém mais morre de medo. Não se toca nesse assunto, não se pensa essa palavra. Ficamos todos vivos, pressentindo a morte, que a terra havia de comer. Mas já não come. E vomita sua morte, enjoada de você.
Já não se gritam os gritos, que se enredam, guardados na gargantas. Chegou o tempo em que não se diz mais.
Toda mão está suja, toda fotografia dói, toda memória é remorso. O esquecimento está morto.
Toda canção é do exílio. Todo trabalho é forçado. E chegou a vez da esperança. É a única que morre.
Mas não se preocupe, a importância não tem mais importância.
Os sertões murcharam, os mares se afogaram, os desertos sumiram. As flores se mataram, os soldados atrofiaram, as mães desertaram, os ditadores choraram, os democratas fugiram. O que restou? Quem sabe? Não há ninguém para responder. Não há ninguém para perguntar.
A partir de hoje, cada um já nasce com seu próprio pânico. E nas maternidades estão brotando flores amarelas e medrosas.

César Cardoso (na revista Caros Amigos de novembro de 2003)

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