Disse o profeta:

Sabe do que, magrinha?

Eu tô liso e reto hoje. Não vem com curva, nada muito sutil ou subliminar. Não quero brincar
de preencher os vazios das idéias, histórias e pessoas. Será que ele lembra? Será que presta atenção no que digo? Será que me ama como eu o amo?
E assim prender minha atenção. Nesse novelo sem fim de respostas sem pergunta.

Olha, fala tudo direitinho como o tio ensinou. Fala de fatos e sentimentos, sem nomes longos, grandes famílias e tramas palacianas. Postos, cargos e medalhas. Holerites, contra-cheques, aposentadoria e número do pis. Ano fiscal, ano eleitoral, ano anal.

Comunica o que realmente importa. A essência saborosa dos teus pensamentos sobre a vida.
Assim eu te ouço com prazer. Assim terás minha grata e emocionada atenção.

Compreendeste, magrinha?

Disse o profeta: descomendo palavras
Disse o profeta:

o comedor de palavras sonhava em ter seu nome traduzido para: o inglês, o espanhol, o árabe e o mandarim. Mas nunca dava tempo. A fome era maior.
Disse o profeta:

o comedor de palavras passou uns tempos na prisão. foi pego surrupiando uma alentada antologia do vinicius de moraes, capa dura, verde, letras em dourado. em juízo alegou furto famélico.
Disse o profeta:

o cardápio do comedor de palavras costuma ser o da língua de camões. eventualmente ele se arrisca num anglicismo. certa feita ele descobriu que o ideograma chinês do amor, se pronuncia ai. e teve um orgasmo gastronômico literário.
Disse o profeta:

o comedor de palavras adora quase. em um de seus longos cafés da manhã, ele me confessou que quase não é de difícil digestão, embora muito saborosa. e geralmente vem acompanhada: quase emocionado, quase dia claro, quase nunca...
Disse o profeta:

o comedor de palavras está às turras com o espelho. quando ali mostra um texto escrito, aparece invertido. ele diz que lhes altera gravemente o sabor. ficam impalatáveis.
Disse o profeta:

o comedor de palavras está morrendo de inanição. roubaram-lhe o aurélio cuidadosamente conservado no congelador. agora esmola verbos e substantivos pelas esquinas (adjetivos são acepipes raros). mas a cidade passa muda diante dele.