A solidão do poema
Inventamos as palavras para sobreviver, para com elas construirmos pensamentos e imagens
Sempre tive a curiosidade de ver o que aconteceria se um poema fosse lido durante um programa de televisão bem popular, por exemplo, o programa do Faustão. Uma pausa, e um bom ator leria um poema, com a precisão e o timbre que a poesia requer. Faustão de lado, microfone na mão, silencioso, sem saber o que fazer. As dançarinas de microssaias com o fôlego suspenso. Apenas o ruído do poema. O que aconteceria? O ibope iria a zero? O país cairia no sono? Haveria protestos na rua, saques? Tenho certeza que se fosse um poema ruim, de um amador, ou um poema maneirista, oblíquo e dissimulado, fino produto da poesia universitária (assim como há um forró universitário, há também uma poesia universitária), se fosse um poema ruim, o país, entorpecido, morreria de tédio. Mas e se fosse um grande poema, de Pessoa, Drummond, ou o poema de Montale que comentarei nessa crônica? Não sei, tenho minhas dúvidas. Além do caos, talvez uma breve suspensão da descrença.
Por que a poesia causa espanto? Além do irremediável tédio, que na ausência da experiência comprovadora no Faustão, ainda precisa ser bem medido. Uma das razões do espanto me parece evidente: a poesia reflete um estado mental do autor (ou de uma ficção do autor). Entreabrimos, por alguns segundos, a consciência de outra pessoa, que nos está vedada por princípio. Somos arrancados de nossa solidão de seres conscientes, e brutalmente devolvidos a nós mesmos, no fim do poema. O que acontece com o poema que nos ilude dessa forma?
A neurociência (a verdadeira, não a de auto-ajuda) tem feito descobertas impressionantes sobre a mente humana. Não faz mais nenhum sentido dizer que a ciência estuda a matéria, o mundo físico, ao passo que a filosofia e a literatura teriam como matéria prima a alma, o mundo mental. Os neurocientistas ultrapassaram a barreira do mental, e investigam, por exemplo, a natureza dos estados conscientes. O que é um estado consciente? É uma percepção de segundo grau. Se você percebe um objeto vermelho, você teve uma experiência da cor, mas o estado consciente nasce quando você percebe que percebe a cor vermelha. Você sente que sente, ou se vê pensando. É daí que nasce o eu, que é uma história que liga todas as sensações, todos os estados mentais. E o mistério (ou drama) é que esse estado consciente é único e intransferível: só quem está consciente da percepção do vermelho pode sentir o que é perceber a cor vermelha. Mesmo que eu e você usemos a palavra "vermelho", eu não posso sentir a sensação por você, e nem você pode senti-la por mim. A cor é individual. Estamos condenados à solidão da mente que percebe.
E os cientistas se vêem num dilema, talvez não insolúvel do ponto de vista científico, mas certamente perene do ponto de vista humano. O caso é o seguinte. Suponha que uma neurocientista brilhante tenha vivido toda a sua vida isolada numa sala branca e preta. Depois de longos estudos, ela se tornou uma grande especialista na percepção da cor. Ela conhece todas as conexões neuronais responsáveis pela percepção da cor, domina todos os aspectos físicos e biológicos da cor. Bem, essa neurocientista sabe como funciona e como se engendra a consciência que percebe a cor vermelha, mas é incapaz de vivenciar a cor vermelha, de senti-la. Portanto, não se pode reduzir um estado consciente a um estado físico. Algo se perde no caminho (essa historinha da neurocientista foi bolada pelo filósofo Frank Jackson). Resultado: podemos abrir o cérebro de alguém, espiar lá dentro, mas ainda assim não sentiremos o que esse cérebro sente. Nem pensaremos o que ele pensa. Somos consciências incomunicáveis.
Como isso se liga à poesia, ou ao Faustão? Acho que uma leitura de um grande poema no horário nobre do domingo lançaria uma ponte inesperada sobre as outras mentes que nos circundam. Sim, o poema engana a consciência isolada, o poema torna o mundo mental algo que pode ser compartilhado. Eu acho que só duas coisas fazem isso no mundo: o poema e o amor. São ilusões essenciais contra a solidão.
O poema de Montale (é um de meus poetas favoritos) que gostaria de comentar ilustra essa fuga da solidão da consciência, e o brusco retorno ao mundo do eu, que se fecha sobre si mesmo, como uma concha. O poema se chama Corne-inglês (um instrumento de sopro), e tem uma estrutura muito simples, em três movimentos. Num primeiro movimento, o poema descreve com precisão poética o ruído de uma tempestade ou ventania (daí o título, evocando o ruído produzido pelo instrumento). (As traduções são minhas).
Il vento che stasera suona attento
- ricorda um forte scotere di lame -
Gli strumenti dei fitti alberi e spazza
Lorizzonte di rame.
(O vento que esta tarde toca atento
- lembrando um choque vibrante de lâminas -
Os instrumentos dos galhos, e sopra
O horizonte de cobre).
O poema cria um correlato objetivo do mundo mental de um indivíduo (que é uma personagem, mas tão real quanto um eu). O poema não imita esse estado mental, o poema busca criar um estado mental similar no leitor/ouvinte. O poema é um transmissor de estados conscientes. É um criador de eus. Entramos inesperadamente num mundo que não é o nosso nem nunca poderá ser nosso, pois é um mundo mental de outra pessoa, inabitável por definição. E o espantoso é que esse efeito ilusório é obtido com as mesmas palavras de todos os dias. E uma palavra é um conceito, não uma sensação. Inventamos as palavras para sobreviver, mas os conceitos que elas evocam são meros instrumentos para a construção de pensamentos e de imagens, e estes são totalmente individuais e inalienáveis. Se eu uso a palavra vermelho e você também, ok, temos um conceito, mas não temos a sensação correspondente. Isso só a solidão produz. E você pensar nisso também é intransferível. Você pensar no vermelho é tão solitário quanto senti-lo.Então por que a prerrogativa do poema de, usando conceitos, produzir imagens e pensamentos que não são nossos, mas que podemos sentir como vindo de dentro de nós mesmos? É ilusão de ótica. O poeta é um ilusionista. Montale cria um vento que toca trombone nas árvores, e varre o horizonte escuro, nebuloso, cor de cobre. Essa associação de imagens parece reproduzir o que se passa na mente de alguém, mas não há palavras para isso, só uma colisão de sílabas. Uma mente não é decomponível
Mas o poeta logo apreende uma possibilidade assustadora e mágica: e se houvesse um mundo além do que posso sentir com o meu eu, um mundo além da sala em preto e branco em que vive a neurocientista inventada pelo filósofo? Um mundo além da caverna da mente, superior ao eu, real mas purificado da ilusão? Comunicável?
Essa ilusão da transcendência é uma tentação constante da poesia. Se a poesia transmite estados da mente, então ela seria, em tese, capaz de evocar um mundo transcendental, compartilhado entre todas as mentes. Mas o que seria esse mundo, senão pura evocação? Essa evocação de um mundo supra-individual corresponde ao segundo movimento do poema:
(nuvole in viaggio, chiari
Reami di lassù! Dalti Eldoradi
Malchiuse porte!)
(nuvens
Nos
Na alta Miragem!).
Montale fala em Eldorado, na minha tradução pus diretamente Miragem. O Eldorado é o sonho do fim do eu solitário. Mas é uma miragem. Como seria esse mundo sem o eu que percebe a cor vermelha?
Finalmente, o poema retorna à evocação da tempestade e termina em si mesmo, no coração do poema:
Il vento che nasce e muore
Nellora che lenta sannera
Suonasse te pure stasera
Scordato instrumento,
Cuore
Se o vento que nasce
E
Pudesse tocar as cordas
Do instrumento desafinado,
O coração.
A tempestade começou lá fora, como entidade externa à mente, mas sensível nela, depois migrou para as altas nuvens, em tese superiores ao eu, mas o ruído da tempestade termina ali, de onde, na verdade, nunca saiu: no coração do poema. Agora não mais sabemos se essa mente que sente a tempestade pode ser nossa ou se é algo que perdemos para sempre, além de nós mesmos.
HERON MOURA | Poeta, professor de Lingüística da UFSC, autor de O Respirante (7Letras), entre outros
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