Disse o profeta:

Eu gosto de escrever, mas não sei contar história direito. Talvez algumas que eu tenha vivido, alguns poemas reclamando da saudade ou saudando as doçuras da vida a dois. Mas vejo como é bonito saber contar histórias. Descrever os personagens e os ambientes. O que a gente sentiu quando participou ou ficou sabendo das aventuras. É claro que são muitas.
Minha última foi num buteco, onde estavam passando uns curta-metragens, animações e video clipes. Um povo descolado presente, umas meninas bonitas. Encontrei alguns amigos de outras datas e dentre eles a namorada do Francisco, a Samira. Magra, morena, longos cabelos negros e um olhar penetrante. Eu sabia que ela falava o grego, acho que até ensinava. Já achava espetacular uma pessoa que se dispusesse a estudar essa língua, ao mesmo tempo rara e parte da base da nossa língua portuguesa, junto com o latim.
Acontece que eu ando aí com um projeto de estudar o mandarim e contei isso pra Samira. Ela tentou me explicar a dificuldade de estudar o sistema utilizado na china, que não usa letras ou fonemas, mas ideogramas. Contou que o símbolo que forma a palavra que traduzimos como vazio, é feita dos ideogramas incêndio e floresta.
Por aí comecei a imaginar o tamanho do desafio que estou me propondo. Mergulhar numa cultura que é praticamente de outro planeta, alienígena.
Também fiquei feliz por conviver com figuras como a Samira e o Francisco, gente que tem o que dizer e compartilha com alegria e simplicidade.
Taí uma historinha. Se me der vontade e coragem conto outras.
Disse o profeta:

Dia desses li em algum lugar que é preciso alimentar as ilusões, na vida. Que a velhice chega quando não se as tem mais.
Eu sempre alimentei a ilusão de escrever. E abraçado nela, venho suportando os altos e baixos da vida. Claro que também adoro ler. Mas ser um ávido leitor, não faz um bom escritor. É preciso mais: solidão, paciência pra encontrar aquela parte da gente que tenha algo a dizer.
Algo que seja tão imperioso que se torne uma via de acesso do autor à vida, sua e dos outros.
Registrar com algum estilo, não um amontoado de clichês que se sobrepõem. Afinal a arte está aí justamente pra isso, pra libertar o ser humano desta sucessão de martírios: físicos, emocionais, sociais e metafísicos. Nesse momento em que escrevo, possua a capacidade de dirigir minha imaginação para onde quiser. Claro que essa liberdade fica atrelada a uma série de pequenos nós, senão: o estilo em si, quais palavras escolher para dar vida ao pensamento, como não parecer pedante ou óbvio, como ser original, criativo e ao mesmo tempo simples; imaginar quem possa ler e através disso deixar o texto ser atraente, não chocar demais nem ser moralista, considerando que esse material, pelo simples ato de ser publicado, carrega alguns elementos de posteridade, pelos quais passo a ser julgado no futuro (sem exagero de imaginar-me um gênio da raça) e sabendo da extrema pulverização que veículos como a internet proporcionam, é possível imaginar que algumas pessoas possam ler estas palavras. O que levarão delas para suas vidas? Esse colocar-me no lugar do leitor é um limitante da liberdade criativa. Não deixa de ser também um deles, a vaidade do autor, que pretende alguma verdade e beleza em sua obra. Em sua busca por esses ideiais, pode eliminar elementos que, de outra forma, estariam ali presentes. Aí cabe um adendo. Eu acho que o papel da arte não é só a busca da harmonia, embora num primeiro momento seja isso que busquemos nela. Muitas vezes ela pode querer: chocar, alertar, conscientizar, através também do estranhamento, do medo e da feiúra.
Enfim, o sempre mesmo desafio de transcender e expressar. Que nos carrega vida afora na produção artística. Da renovação em termos de esperança, ou ilusão, como referíamos acima. Toda vez que me permito pegar o papel e a caneta, ou o computador e deitar ali as benditas, ou malditas, palavrinhas. Mais do que um privilégio ou uma alegria, este exercício é uma necessidade.
Neste sentido eu tenho orgulho de ser um escritor, mesmo que nunca publicado tradicionalmente. Ainda que não esteja claro o tipo de repercussão que este espaço na internet venha a representar. Eu, como milhares, milhões de outros, aqui vamos contruindo este espaço pra exprimir nossos desejos, nossa arte e alimentando nossas ilusões.
Disse o profeta:

Do livro, O Insaciável Homem Aranha (Ed. Companhia das Letras, SP, 2004)

- O senhor conhece a bíblia?
-Conheço, gosto muito dos evangelhos.
-Ah, então o Senhor...
-Olhe, meu amor, os evangelhos são uns romances esplêndidos, mas não gosto de padres, nem de igrejas, nem de missas, nem dos ritos e das obras de teatro que montam. Nem de religião, nem de política. Por princípio, recuso tudo que constitua um eixo de poder.
-Um eixo de poder?
-É.
-Ehhh...
-Não sabe o que é um eixo de poder? É a partir de um eixo de poder que manipulam você.
(pág. 84)

Fazia um calor sufocante e me entretive olhando pela janela os vizinhos dos andares inferiores. Me pergunto se todas as vidas são tão vertiginosas e caóticas como a minha. Será que todos vivem tão desesperadamente? É insuportável. Às vezes penso que já está tudo feito. E não tem volta. Quando a gente escreve até transformar a escrita em vício, a única coisa que se faz é explorar. E para encontrar alguma coisa é preciso ir até o fundo. O pior é que, uma vez no fundo, é impossível regressar até a superfície. Não se pode sair jamais.
(pág. 87)

A gorda se foi. Fiquei sozinho com os cachorros e a novelona de Eduardo e sua mãe. Eu estava passando por um período de intolerância total. E isso é terrível. Tinha de controlar o desejo de começar a chutar os cachorros até matar. E de espatifar o rádio no chão. Essas etapas são muito dolorosas. Às vezes consigo abrandá-las um pouquinho e entro em fases de serenidade. Então as pessoas acham que sou um sujeito nobre e generoso desde nascença.
(pág. 91)