Disse o profeta: mais uma leitura compartilhada. Do Flávio Moreira da Costa, o Desastronauta, publicado pela Agir em 2006.
- de vez em quando dou por mim murmurando quase em voz alta "existe gente demais no mundo", isso ocorre quando estou em ruas muito movimentadas, em aglomerações - as pessoas nada significam umas pras outras, a não ser depois da longa trajetória que leva à amizade ou ao amor, enquanto isso você é apenas um vulto que passa, se você quer ter a sensação de se sentir como uma formiga, uma poeira, vá a Nova York, lá eu vi um homem chorando, gritando na estação do metrô, para que chamassem a polícia porque ele queria ser preso, tanta era a miséria, a solidão, a fome e o isolamento - os jornais chamam isso de "o drama da cidade grande", a verdade é que você é um zero, entendeu, ou melhor, apenas um/quatro milhões de avos, nada mais que isso, aceite pois, essa verdade, pequeno-burguês, operário, poeta, professorzinho, engenheiro, marginal, a não ser que você possua uma excelente conta bancária, e com o dinheiro anule muitos avos e aumente a sua importância, compre situação, prestígio, durma com mais mulheres bonitas (pois o sex-appeal está no livrinho de cheques), passe a ser conceituado "senhor Fulano de Tal", seu nome aparece em determinadas colunas de jornais, freqüenta festas black-tie, conhece simpáticas raposas políticas, convida-as para jantar e acaba - afinal de contas a sua esposa é atraente - você mesmo um político, se você é bacharel em ciências jurídicas e sociais isso ajuda, pois com o anel mágico no dedo seu handicap aumenta, e pode mesmo acabar deputado federal ou quem sabe governador (questão de cuidar das amizades) - mas isso tudo é excessão, a regra é: apenas um dado estatístico, e convém se conformar com isso - conforme-se senhor um-quatro milhão de avos! - escravidão, onde estás que não te abolem?! - mas no fundo da sua neurose acha que é até bom ser anônimo, que tem lá suas vantagens, você sabe que a humanidade se divide entre os de cima e os de baixo - e neste século surgiu em massa um estado fluídico intermediário (a classe média, mérdia, mérdia), o mais triste pois, vindo de baixo, contempla, adula, deseja o status de cima, e se chega a atingi-lo passa a ser pior que os outros, a lírica humanidade-civilização-sifilização se compõe de mau-caráteres e imbecis - você percebe onde deve se localizar - e, de repente você percebe que o mito de Sísifo não é mito coisa nenhuma, mas a pura, dura realidade: estamos sempre carregando uma pedra ladeira acima que teima em rolar novamente para baixo e recomeçamos a empurrá-la para acima e assim para sempre, amém - ai dos que não recomeçam! - e as pessoas enlouquecem quando resolvem se questionar sobre essa ação, essa força, e cada um arruma um nome-desculpa, Deus, ou isso e aquilo - literatura, literaturra, literatice - , a verdade é que o mundo caminha para o socialismo ou para o abismo, talvez para o abismo(...)
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Um comentário:
bela descoberta e redescoberta.
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